O que foi estar no Haiti!

             Na maioria absoluta das vezes, entre os militares brasileiros falar em ir para Missão do Haiti significa aumento nos ganhos salariais. De fato na prática significa, em alguns casos um aumento de 100 % nos vencimentos. Talvez por isso exista um número de voluntários bem maior que o de vagas disponíveis.  Porém servir na MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti) é bem mais que isso.
            Após as questões burocráticas segue-se o rigoroso processo seletivo que engloba exames médicos, psicológicos e testes diversos. Depois de selecionado e aprovado inicia-se o preparo técnico e psicológico para enfrentar os, em geral, seis meses de Missão em território estrangeiro.
            Durante o preparo além das questões relativas às atividades bélicas são ministradas diversas instruções de cunho psicológico preparando os militares para o convívio em confinamento e relacionamento com a população haitiana. São simuladas situações que irão e/ou que poderão ser encontradas no Haiti. Algumas palestras abordam questões culturais e históricas do país, como idioma e costumes. Mas nada que seja tão preciso quanto à realidade que lá encontramos.
            O Brasil está lá desde 2004 e 16 contingentes já passaram por lá. Sempre há um aprendizado em cada troca de grupamentos que ocorre, geralmente, a cada seis meses. As observações e experiências de cada troca são, por via de regra, aplicadas no preparo do contingente subsequente. Essas melhorias são evidentes nos diversos aspectos da Missão e sempre agregam conhecimento à formação.
            Algo que me chamou a atenção no preparo psicológico foi a questão levantada previamente de que o militar nessa Missão desenvolve o que se chamou de P.I.N.O. Isso é na vereda as inicias de alguns estágios emocionais desenvolvidos pelos militares. Seria um estagio inicial, logo nas primeiras semanas após a chegada, de Pena, diante da situação precária que vive a população. Em seguida, talvez devido ao convívio diário, começa a se observar uma Indiferença, não tendo a mesma atenção dos primeiros dias. Depois de mais algum tempo os militares começam a ter uma sensação de Nojo da população local, já se sentindo incomodados com toda aquela, sob nossa ótica, desorganização generalizada, falta de controle e respeito a normas e leis. E já nas semanas que antecedem o rodízio do contingente muitos já adquiriram o Ódio aos haitianos, por eles não seguirem o que nós seguimos, por não terem a educação e hábitos que julgamos ter e até mesmo por serem como são. Nessa fase é quando se observa o maior número de incidentes indesejáveis entre alguns integrantes da tropa.
            Durante a Missão procurei observar esses comportamentos, e, em grande parte da tropa eles são bastante evidentes. Porém, apesar de nos terem dito sobre o P.I.N.O. em momento algum foi abordada a questão de como trabalhar ou minimizar os efeitos de tal comportamento.  Levanto isso porque na fase do Nojo e principalmente do Ódio muitos militares ficam irreconhecíveis. Aqueles mesmos que sentiam pena há poucos meses atrás, agora adotam um comportamento completamente diferente diante das mesmas situações e das mesmas pessoas de outrora. Em muitos casos isso danifica o perfeito e objetivado funcionamento das atividades previstas pelas Nações Unidas, para serem cumpridas pelas tropas brasileiras.
           
A Mídia

Não é raro entre os próprios militares a surpresa ao chegar ao Haiti e se depararem com uma realidade um pouco diferente daquela que imaginavam. A ideia que se tem das prioridades brasileiras é geralmente formada pela mídia e por uma visão romântica da MINUSTAH. Muitos dos militares compartilham do senso comum sobre as atividades brasileiras junto à ONU (Organização das Nações Unidas).
O Brasil no Haiti é destaque geralmente quando são realizadas reportagens sobre ajuda humanitária e apoio à população civil. Porém na divisão de tarefas da ONU essas não podem, por assim dizer, serem consideradas atividades prioritárias. O Batalhão de Infantaria de Força de Paz do Brasil (BRABAT) tem a responsabilidade principal sobre a segurança de determinadas áreas de Porto Príncipe, diga se de passagem, as mais violentas. Papel esse muito bem cumprido e tido como exemplar entre as forças de paz.
Associado às responsabilidades sobre a segurança o Brasil presta assistência humanitária de forma reduzida e em muitos casos voluntariamente e por vezes “contrariando” os orientações da ONU. Em algumas reportagens feitas por emissoras de televisão foram mostradas atividades de militares brasileiros em um orfanato que situa-se na área de responsabilidade (AOR) do Siri Lanka. Essas imagens quando veiculadas no Brasil causam grande comoção dos telespectadores por transmitir uma ideia de aquilo é rotina e prioridade para nossas tropas. Na realidade essa atividade, especificamente, é realizada por alguns poucos militares voluntários e sem o consentimento da ONU por se tratar de uma ajuda humanitária (CIMIC) realizada fora da AOR do Brasil.
O militar que se dispor a realizar serviço voluntário e humanitário encontrará a oportunidade, sobretudo por estarmos falando de um país completamente destruído e de uma população que vive abaixo da linha de pobreza. Mas o militar que vai pensando que isso é uma rotina geralmente se decepciona.
Cabe lembrar e ressaltar que a atividade fim do Brasil no Haiti, que é garantir a segurança, é de extrema importância e de imensurável relevância e necessidade para o Haiti e para a MINUSTAH. Grandes progressos foram alcançados pelas tropas brasileiras, foram alcançadas estabilidade e segurança em áreas que até então eram impossíveis de serem acessadas por estrangeiros e com graves problemas relativos à segurança da população civil. O trabalho e êxito alcançados Brasil são, provavelmente, os mais significativos resultados entre os países participantes da MINUSTAH.

Brasil X ONU
Muito se questiona porque o Brasil, que possui tantos problemas internos, regiões violentas e miséria está ajudando tanto uma outra Nação. A história é longa mas resumidamente é mais ou menos isso:
Em 2004, ano de implantação da MINUSTAH, o governo brasileiro estava em disputa por uma assento definitivo no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Tomar frente da força militar da MINUSTAH seria uma perfeito cartão de visita ou um lobby para impulsionar a candidatura brasileira. Porém a Missão que era prevista para seis meses, já está em quase nove anos e sem previsão de terminar.
Hoje mesmo com a prevista redução do número de militares em solo haitiano, o Brasil não sabe como sair de lá. Assumiu-se uma responsabilidade que por conveniência é amplamente apoiada pelos  Estados Unidos, sobretudo por ser na realidade um problema externo a menos para os o governo norte americano. Passada a luta por conseguir o almejado assento no Conselho de Segurança, o Brasil não conseguiu a vaga preterida e assumiu uma responsabilidade que não tem como abandonar. Hoje o Haiti é um fardo muito pesado que o Brasil não pretende mais carregar.
Existe uma importante contra partida da ONU no custeio das tropas brasileiras na ilha. Porém ainda assim uma importante parcela do orçamento do Ministério da Defesa é destinada ao preparo e manutenção dos militares brasileiros. O adestramento da tropa é talvez a maior herança que as Forças Armadas podem alcançar com a Missão. A cobrança de explicações por determinados seguimentos da sociedade é talvez o preço mais alta que o governo paga pelo status de estar no Haiti.


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